O que os leitores grifam em Cabrita da Peste e o que isso revela sobre nós
- Luan Barbosa

- 9 de set.
- 4 min de leitura
Atualizado: 10 de set.
Um livro nunca é só do autor. Depois de publicado, ele passa a ser escrito de novo em cada leitura, em cada silêncio, em cada sublinhado. O Kindle revela uma parte dessa intimidade: os trechos que os leitores mais grifaram em Cabrita da Peste. À primeira vista, parecem frases isoladas, mas, olhando com mais atenção, dá pra ver sinais de uma busca coletiva por nomear dores, rir das próprias defesas e reconhecer-se em alguém. Separei algumas pra gente refletir juntos. Bora?
Alguns chamam de intuição, outros de autossabotagem. Gosto de pensar que sofro de preguiça emocional.
A frase surge quando Murilo, o protagonista, explica porque desistiu de um date. Não é falta de desejo, mas a antecipação de que não vai dar em nada. Ele prefere se recolher. Quantas vezes fazemos isso? Recusamos convites, deixamos mensagens sem resposta ou desistimos de um encontro — não porque não queremos, mas porque já decidimos, de antemão, que não vai valer a pena?
A tal “preguiça emocional” pode ser lida como covardia, mas também como autoproteção. É a muralha de Murilo erguida em pequena escala. O que ele chama de preguiça é, na verdade, fadiga: cansaço de se decepcionar, de tentar e não dar certo.
[...] depois de algumas experiências negativas em relacionamentos, você vai construindo uma fortaleza para se proteger de qualquer dano. Funciona, mas também fica praticamente impossível qualquer um alcançar você.
Essa fala surge numa das sessões de Murilo com Márcia, sua terapeuta. É um diagnóstico que não soa como sentença, mas como espelho: Murilo está cercado por muros invisíveis, defesas que ele construiu depois de tanto se machucar. (Quem nunca?)
Depois de uma decepção, de um abandono ou de um amor que se quebrou, a gente ergue muralhas — e, por um tempo, funciona. Mas a proteção vira isolamento: quanto mais seguros nos sentimos, menos disponíveis ficamos para o encontro. O grifo desse trecho revela uma questão que me parece coletiva: como se proteger sem deixar de ser alcançado?
O fato, Murilo, é que você passa a vida fazendo projetos pela metade porque tem medo de terminá-los e descobrir o próximo passo.
Aqui, Márcia confronta de frente. É sobre escrever, mas também sobre viver. Murilo não teme o fracasso; teme o depois. Concluir é encarar o vazio do que virá a seguir. Quantos rascunhos inacabados, cursos trancados ou paixões abortadas antes do tempo já vivemos? O medo, às vezes, não está no processo, mas no que acontece quando ele acaba.
Pra mim, esse trecho é grifado porque fala de uma procrastinação que não é preguiça, mas angústia. Quem marca essa frase talvez se reconheça no alívio de nunca terminar nada, porque terminar é ser convocado a recomeçar. E isso assusta.
A gente só pode sarar quando expõe a ferida e permite que vire cicatriz.
Murilo diz isso não como lição, mas como tentativa de acreditar no que repete. O livro mostra que ele ainda não sabe bem como expor suas próprias feridas. Mas, ao dizer, ele convoca o leitor a olhar para as suas.
Talvez por isso esse trecho soe quase como mantra. Não é só literatura: vira lembrete. Quem grifa parece dizer para si mesmo: eu sei, preciso deixar a ferida respirar. Mas será que queremos mesmo cicatrizar? Ou será que há dores que preferimos manter abertas porque elas ainda nos conectam ao que perdemos?
Seu pai também não foi o que você esperava, foi? A expectativa do outro não é responsabilidade nossa.
Talvez o mais íntimo e brutal dos trechos. Não se trata apenas de Murilo, mas da ferida universal da paternidade. O que esperamos dos pais? E o que fazemos quando eles falham?
Essa frase carrega a decepção primordial que molda tantas outras relações. O grifo aqui é quase um grito coletivo: eu também. É o lembrete de que não cabe a nós sustentar o peso das expectativas alheias — nem mesmo das mais fundadoras. Mas quem consegue, de fato, se livrar dessa herança?
É preciso muita coragem para conhecer o outro e deixar que ele te conheça
A frase aparece quando Murilo reflete sobre a possibilidade de um novo amor. Conhecer alguém parece, teoricamente, simples: sair para tomar um café ou uma cerveja, conversar, descobrir afinidades, testar a química. Mas deixar-se conhecer é o ponto de vertigem, porque aí não se trata de mostrar só o que temos de bonito. É abrir também as rachaduras, os medos, as partes de nós que ainda não sabemos nomear. Murilo teme justamente isso: ser visto de perto.
Talvez por isso esse trecho tenha sido grifado tantas vezes. Ele não fala só de romance, mas da coragem que qualquer relação exige. Estamos dispostos a nos deixar ver? Até onde vamos no risco de mostrar vulnerabilidade sem garantias de acolhimento? Conhecer o outro é atravessar uma ponte. Permitir que o outro nos conheça é derrubar as muralhas que erguemos por dentro. É coragem — e também entrega.
Muita coisa a se pensar. Ter ciência desses destaques é como espiar o inconsciente coletivo de quem lê. Cada linha sublinhada é um pacto entre autor e leitor (e a todo mundo que tem kindle): “isso também é sobre mim”.
Talvez seja essa a força de Cabrita da Peste: não oferecer respostas prontas, mas abrir feridas que pedem nome, muros que pedem rachaduras, cicatrizes que pedem tempo.
No fim, a pergunta não é só o que Murilo viveu, mas o que cada um de nós viu em si ao acompanhá-lo.

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