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O que sobra depois da leitura?

Aurora Fornoni Bernardinitradutora, romancista, pesquisadora e professora universitária de literatura na Universidade de São Paulo — disse recentemente que a literatura se perde quando prioriza a mensagem em vez da forma. A declaração repercutiu porque toca numa ferida antiga da crítica literária: a dicotomia entre a “forma” — vista como linguagem, estilo, rigor — e a “mensagem” — o conteúdo, a experiência, o que se diz.


Aurora não é qualquer voz: construiu carreira defendendo a importância do estilo, da invenção formal, do peso da palavra como obra de arte em si. É nesse lugar que ela estabelece fronteiras: um livro pode até emocionar multidões, pode até se tornar um best-seller, mas se não traz originalidade de linguagem, para ela não é literatura — é entretenimento.


A provocação me atravessou, mas não como um ponto final. Mais como uma pergunta que ecoa: será mesmo possível separar as duas coisas?


Forma e mensagem: uma falsa divisão?

É claro que existe literatura escrita com apuro estético e pouca vida dentro. Também existe literatura que escancara a urgência do que quer dizer, mas tropeça na superfície da linguagem. Aurora, nesse sentido, tem razão em apontar riscos.


Mas entre um extremo e outro, há uma zona de contato, um lugar em que forma e mensagem não apenas convivem — elas se tornam inseparáveis. É nesse espaço que, acredito, a literatura mais potente acontece.


Em Cabrita da Peste, foi exatamente nesse entrelugar que escolhi escrever. Ou melhor: foi esse espaço que me escolheu, porque não escrevi pensando em teoria, nem em caber em definições acadêmicas. Escrevi porque precisava sobreviver.


O gesto de um livro

O romance nasce híbrido: um roteiro dentro do livro, sessões de terapia que se tornam espelho, páginas em que o riso vem sempre acompanhado da dor. Gargalhar também é um jeito de chorar. O recurso formal não está ali como ornamento, mas como corpo da própria mensagem.


Quando Murilo, protagonista, engaveta projetos, evita amores ou se perde entre crises de ansiedade, o leitor acompanha o movimento não só pelo que é dito, mas pela forma como é narrado. A escrita carrega os silêncios, os tropeços, as repetições de quem fala com a terapeuta ou rascunha um roteiro inacabado.


Nesse gesto, forma e mensagem não competem. A cicatriz não é só tema: é também estrutura.


O atravessamento

Desde que o livro saiu, recebo mensagens que me desmontam. Leitores que se reconheceram em Murilo, que disseram ter procurado terapia depois da leitura, que confessaram ter se sentido menos sozinhos, menos culpados, menos perdidos.


Quando escrevi, era para segurar minha própria vida no lugar. Era pra não sucumbir. Agora descubro que essa escrita, feita na beira do desespero, atravessa o corpo de outros.

Aurora diria que literatura se define pela forma. Eu diria que literatura se prova no atravessamento: quando deixa de ser só minha e passa a pulsar no outro.


O silêncio depois

É nesse instante, quando o livro se fecha e sobra o silêncio, que eu acredito que a literatura acontece. Não na disputa entre forma e mensagem, mas no incômodo que ressoa, na coragem que se acende, na solidão que se desfaz.


Talvez não importe tanto o rótulo. O que importa é o que sobra depois.


É estranho, é bonito, é literatura?


Cabrita da Peste
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